quinta-feira, 31 de maio de 2012

Esse Pão Que Venho Abrir - Dylan Thomas


Esse Pão Que Venho Abrir

Dylan Thomas

Este pão que venho abrir foi outrora centeio,
este vinho sobre uma ramada desconhecida
ficou submerso nos seus frutos;
o homem em cada dia, em cada noite o vento
arrancaram a alegria dos cachos e derrubaram as searas.

Com o vinho, outrora o sangue de estio
palpitava na carne que ornamentava a videira,
outrora neste pão
era feliz sob o vento o centeio;
mas o homem despedaçou o sol e abateu o vento.

Esta carne que despedaças, este sangue
que traz a desolação pelas veias,
eram os cachos e o centeio
nascidos das raízes e da seiva dos sentidos;
este meu vinho que bebes, este pão de que te alimentas.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Retrato do Poeta Quando Jovem - José Saramago


Retrato do Poeta Quando Jovem

José Saramago


Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Anatomia do monólogo - José Paulo Paes


Anatomia do monólogo

José Paulo Paes


ser ou não ser?
er ou não er?
r ou não r?
ou não?
onã?

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Decadência - Augusto dos Anjos


Decadência

Augusto dos Anjos


Iguais às linhas perpendiculares
Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!


A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!


Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,


Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o último dente
E a armação funerária das clavículas!

domingo, 27 de maio de 2012

Errata - Ledusha


Errata

Ledusha
                                                                                  
onde lia-se desejo
leia-se despejo
não quero mais
essa vertigem de vogais
- tantos ais -
como se fossem consoantes

sábado, 26 de maio de 2012

A Noite Bela - Giuseppe Ungaretti


A Noite Bela
Devetachi, 24 de agosto de 1916

Giuseppe Ungaretti


Que canto levantou-se esta noite
que entretece
com o cristalino eco do coração
as estrelas

Que festa vernal
de coração em núpcias

Fui
um charco de trevas

Hoje mordo
como uma criança a teta
o espaço

Hoje estou bêbado
de universo

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Flautim - Moacyr Félix


Flautim

Moacyr Félix

Foi quando
naquele
momento
tão longe,
disseste
nos olhos
o que
nem tu
sabias,
e agora
não lembras,
que dentro
de mim,
oculto
no sangue
e em gosto
de Terra,
senti o
mistério
fluindo.

Naquele
momento
fui deus.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Sentimento do Mundo - Carlos Drummond de Andrade


Sentimento do Mundo

Carlos Drummond de Andrade


Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados

ao amanhecer esse amanhecer
mais noite que a noite.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Os Pobres - William Carlos Williams


Os Pobres

William Carlos Williams


É a anarquia da pobreza
que me encanta, a velha
casa amarela de madeira recortada
em meio às novas casas de tijolo

Ou uma sacada de ferro fundido
com gradis representando ramos
folhudos de carvalho. Isso tudo combina
com as roupas das crianças

que refletem cada período e
estilo da necessidade -
Chaminés, telhados, cercas de
madeira e metal numa época

sem cercas delimitando quase
coisa alguma: o velho
de suéter e chapéu preto
a varrer a calçada -

os seus três metros de calçada
na ventania que inconstante
virou-lhe a esquina para vir
tomar conta da cidade inteira

terça-feira, 22 de maio de 2012

Romance - Mário Faustino


Romance

Mário Faustino

Para as Festas da Agonia
Vi-te chegar, como havia
Sonhado já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses,
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena, ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer.
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena,
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servos
De outra Festa mais terrena —

Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Poema - Sophia de Mello Breyner Andresen


O Poema

Sophia de Mello Breyner Andresen

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

domingo, 20 de maio de 2012

Cantiga Para Não Morrer - Ferreria Gullar


Cantiga Para Não Morrer

Ferreria Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

sábado, 19 de maio de 2012

870 - Emily Dickinson


870

Emily Dickinson

Primeiro Ato é achar,
Perder é o segundo Ato,
Terceiro, a Viagem em busca
Do “Velocino Dourado”

Quarto, não há Descoberta —
Quinta, nem Tripulação —
Por fim, não há Velocino —
Falso — também — Jasão.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Serão do Menino Pobre - Ascânio Lopes


             Serão do Menino Pobre

Ascânio Lopes

Na sala pobre da casa da roça
papai lia os jornais atrasados.
Mamãe cerzia minhas meias rasgadas.
A luz frouxa do lampião iluminava a mesa
e deixava nas paredes um bordado de sombras.
Eu ficava a ler um livro de histórias impossíveis
— desde criança fascinou-me o maravilhoso.
Às vezes, Mamãe parava de costurar
— a vista estava cansada, a luz era fraca,
e passava de leve a mão pelos meus cabelos,
numa carícia muda e silenciosa.

Quando Mamãe morreu
o serão ficou triste, a sala vazia.
Papai já não lia os jornais
e ficava a olhar-nos silencioso.
A luz do lampião ficou mais fraca
e havia muito mais sombra pelas paredes...
E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Fronteira - Tasso da Silveira



Fronteira

Tasso da Silveira


Há o silêncio das estradas
e o silêncio das estrelas
e um canto de ave, tão branco,
tão branco, que se diria
também ser puro silêncio.
Não vem mensagem do vento,
nem ressonâncias longínquas
de passos passando em vão.
Há um porto de águas paradas
e um barco tão solitário,
que se esqueceu de existir.
Há uma lembrança do mundo
mas tão distante e suspensa...

Há uma saudade da vida
porém tão perdida e vaga,
e há a espera, a infinita espera,
a espera quase presença
da mão de puro mistério
que tomará minha mão
e me levará sonhando
para além deste silêncio,
para além desta aflição.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Homem Público Nº 1 - Ana Cristina Cesar


Homem Público Nº 1

Ana Cristina Cesar


Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Comunhão - Ilka Brunhilde Laurito


Comunhão

Ilka Brunhilde Laurito


Já que me sinto muito digna
de me assentar à tua mesa,
não quero migalhas, não,
eu quero o pão inteiro.

Tu e eu, massa e fermento
em ávido silêncio:
casca e miolo,
o bolo
e o seu recheio

Vem.
Estende os lençóis sobre esta
mesa
com cheiro de suor e de
alfazema.
E vamos trabalhar a noite
e o seu levedo
com as mãos,
a boca,
o corpo aceso,
para que a aurora nos en-
tregue,
ainda quentes,
as últimas fatias de amor
amanhecente
com gosto de café, de leite
e de manteiga.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Por trás do poema - José Chagas


Por trás do poema

José Chagas

Por trás do poema
não se respira

Ventos se quebram
rolam onde o chão trabalha
um verde de outra cor

Por trás do poema
devemos estar mortos
inoticiados

Palavras emigram
vão para o labor de espessas
emoções

Por trás do poema
as chuvas se gastam
gastam-se os vôos os frutos
a alegria branca das praias

O tempo inicia seus escombros
por trás do poema

Uma rua de estátuas
cai sua cinza
cai o seu nada
de muitos séculos

E um rio em si mesmo se afoga
seca em suas areias
a vontade de mar

Não olheis nunca por trás do poema

podem vossos olhos
em sal tornar-se

domingo, 13 de maio de 2012

Burocracia - Francisco Carvalho


Burocracia

Francisco Carvalho


Eles te advertem que a aurora foi abolida
por tempo indeterminado.
Eles te comunicam que o trigo e o vento
vão ser exportados para o arco-íris.
Eles te aconselham a esquecer
o corpo ensangüentado dos acontecimentos.
Eles te ensinam que o orvalho não cai
sobre aqueles que semeiam dúvidas.
Eles te mandam esvaziar as palavras
de toda a possível reminiscência.
Eles te fiscalizam do alto dos edifícios
escanchados nalgum dragão lunar.
Eles te dão um ataúde azul
e te ordenam que é tempo de morrer.

sábado, 12 de maio de 2012

Debaixo do Tamarindo - Augusto dos Anjos



Debaixo do Tamarindo

Augusto dos Anjos


No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!


Hoje, esta árvore de amplos agasalhos
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da flora brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!


Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,


Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Aurora - Adolfo Casais Monteiro


Aurora

Adolfo Casais Monteiro

A poesia não é voz — é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Pastor - José Inácio Vieira de Melo


Pastor

José Inácio Vieira de Melo


Na noite do Sertão,
a vastidão das ondas do vento
— essas plagas sempre foram mar —
invade e inunda o que há,
com fúria maior que a das águas.

A voz das ondas do vento,
com seus passos sem rastros,
deixa marcas indeléveis
e açoita as dores
— esses cavalos xucros —
que disparam no íntimo do vivente
como numa Tróia às avessas.

E quando as chamas começam a afogar,
os olhos estendem-se aos céus,
mira-se a lavoura necessária:
uma roça de estrelas.

Aqueles olhos se ovelham
e o sono é sereno.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Bem-Aventurados - Mário Quintana


Bem-Aventurados

Mário Quintana


Bem-aventurados os pintores escorrendo luz
Que se expressam em verde
Azul
Ocre
Cinza
Zarcão!
Bem-aventurados os músicos...
E os bailarinos
E os mímicos
E os matemáticos...
Cada qual na sua expressão!

Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata linguagem alheia...

A impura linguagem dos homens!

terça-feira, 8 de maio de 2012

7 - Mário Sá Carneiro


7

Mário Sá Carneiro

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
     Pilar da ponte de tédio
     Que vai de mim para o Outro.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Agiotagem - Mário Chamie


Agiotagem

Mário Chamie

um
dois
três
o juro:o prazo
o pôr / o cento / o mês / o ágio

p o r c e n t a g i o.

dez
cem
mil
o lucro:o dízimo
o ágio / a mora / a monta em péssimo

e m p r é s t i m o.

muito
nada
tudo
a quebra:a sobra
a monta / o pé / o cento / a quota

h a j a   n o t a
agiota.