terça-feira, 31 de julho de 2012

Soneto - Junqueira Freire


Soneto

Junqueira Freire


Arda de raiva contra mim a intriga, 
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável 
A vil calúnia, pérfida inimiga.

Una-se todo, em traiçoeira liga,
Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.

Sei rir-me da vaidade dos humanos; 
Sei desprezar um nome não preciso; 
Sei insultar uns cálculos insanos.

Durmo feliz sobre o suave riso
De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.


segunda-feira, 30 de julho de 2012

Porque - Sophia de Mello Breyner Andresen


Porque

Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

domingo, 29 de julho de 2012

Minha grande ternura - Manuel Bandeira


Minha grande ternura

Manuel Bandeira


Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.


Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.


Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.


Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.


Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.

sábado, 28 de julho de 2012

Timidez - Cecília Meireles


Timidez

Cecília Meireles

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes…

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando…

e um dia me acabarei.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Na Biblioteca - Charles Simic


Na Biblioteca
                                      Para Octavio

Charles Simic

Há um livro chamado
Dicionário de Anjos.
Ninguém o abrira em cinqüenta anos.
Eu sei, porque quando o abri
as capas rangeram, as páginas
se esmigalharam. Ali descobri

que os anjos já foram tão numerosos
como espécies de moscas.
O céu ao entardecer
ficava coalhado deles.
Era preciso agitar os braços
para mantê-los a distância.

Agora o sol brilha
através das altas janelas.
A biblioteca é um lugar tranqüilo.
Anjos e deuses se amontoam
em livros escuros não-abertos.
O grande segredo está
em alguma estante, junto à qual
a srta. Jones passa
em suas rondas diárias.

Ela é muito alta e mantém
a cabeça inclinada como se escutasse.
Os livros estão sussurrando.
Não ouço nada, mas ela sim.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Duração - William Carlos Williams


A Duração

William Carlos Williams

Uma folha amarfanhada
de papel pardo mais
ou menos do tamanho

e volume aparente
de um homem ia
devagar rua abaixo

arrastada aos trancos
e barrancos pelo
vento quando

veio um carro e Ihe
passou por cima
deixando-a aplastada

no chão. Mas diferente
de um homem ela se ergueu
de novo e lá se foi

com o vento aos trancos
e barrancos para ser
o mesmo que era antes.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Alfaiate - Cyro de Mattos


Alfaiate

Cyro de Mattos


Pijaminha.
Calção.
Calça curta.
Farda.
Calça comprida.
Paletó.
Terno preto.

Nas mãos
caprichosas
o tempo
paciente
sempre
costurava
suas medidas
exatas.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Na poesia - Gastão Cruz


Na poesia

Gastão Cruz

Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Amanhã - Gonçalves Dias


Amanhã

Gonçalves Dias

Amanhã! — é o sol que desponta,
É a aurora de róseo fulgor,
É a pomba que passa e que estampa
Leve sombra de um lago na flor.

Amanhã! — é a folha orvalhada,
É a rola a carpir-se de dor,
É da brisa o suspiro, — é das aves
Ledo canto, — é da fonte — o frescor.

Amanhã! — são acasos da sorte;
O queixume, o prazer, o amor,
O triunfo que a vida nos doura,
Ou a morte de baço palor.

Amanhã! — é o vento que ruge,
A procela d'horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dor.

Amanhã! — é a folha pendida.
É a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.

Amanhã! — são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã! — o triunfo, ou a morte;
Amanhã! — o prazer, ou a dor!

Amanhã! — o que val', se hoje existes!
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é Senhor!

domingo, 22 de julho de 2012

Os Pobres - Olavo Bilac


Os Pobres

Olavo Bilac

Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, de pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai quando os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhe os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio do vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receieis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prêmio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão...

sábado, 21 de julho de 2012

Além alma (uma grama depois) - Paulo Leminski


          Além alma (uma grama depois)

Paulo Leminski

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.

Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?

Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.

Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Madrugada - Ferreira Gullar


Madrugada

Ferreira Gullar

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Com um só fósforo ilumino o infinito - Amadeu Baptista


Com um só fósforo ilumino o infinito

Amadeu Baptista

Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Poeminha Amoroso - Cora Coralina


Poeminha Amoroso

Cora Coralina

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu…
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu…
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo…
eu te amo, perdoa-me, eu te amo…

terça-feira, 17 de julho de 2012

Poemas - António Ramos Rosa


Poemas

 António Ramos Rosa                 

Na grande confusão
deste medo 
deste não querer saber 
na falta de coragem 
ou na coragem de 
me perder me afundar 
perto de ti tão longe 
tão nu
tão evidente 
tão pobre como tu 
oh diz-me quem sou eu 
quem és tu?

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Hora Poética - Eunice Arruda


Hora Poética

Eunice Arruda

Para esquecer esta
dor
— transformá-la em poesia

Para eternizar esta
dor
— transformá-la em poesia

domingo, 15 de julho de 2012

3 de Maio - Oswald de Andrade


3 de Maio

Oswald de Andrade

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi

sábado, 14 de julho de 2012

Mar - Sophia de Mello Breyner Andresen


Mar

Sophia de Mello Breyner Andresen


I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Arte de amar - Manuel Bandeira


Arte de amar

Manuel Bandeira


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Dizem que finjo ou minto - Fernando Pessoa


Dizem que finjo ou minto

Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda, 
É   como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Temor - Junqueira Freire


Temor

Junqueira Freire


Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olhe que a terra
        Não sinta o nosso peso.

Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços.
Escondamo-nos um no seio do outro.
Não há de assim nos avistar a morte,
        Ou morreremos juntos.

Não fales muito. Uma palavra basta
Murmurada, em segredo, ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz, - nem um suspiro,
        Nem um arfar mais forte.

Fala-me só com o revolver dos olhos.
Tenho-me afeito à inteligência deles.
Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto.
        Somente pra os meus beijos.

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olha que a terra
        Não sinta o nosso peso.

terça-feira, 10 de julho de 2012



Telejornal

Francisco Carvalho

Um míssil corta o assombro
dos anjos a cavalo.
Corta a luminosa
metade do centauro.

Uma bomba explodiu
numa aldeia asiática.
Vozes ensangüentadas
relampejam no céu.

Sinto cheiro de pólvora.
Maldito cheiro da morte.
Sinto medo ao protesto
dos defuntos atômicos.

Um míssil corta a nuvem
com seu fulgor maligno.
Os anjos pegam fogo
besta do apocalipse.
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.  

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Poema-1 - Luíza Mendes Furia


Poema-1

Luíza Mendes Furia

Esculpir conchas
tão delicadas
e diversas
é um segredo do mar
e dos moluscos.

Fazer versos
como quem esculpe conchas
um desafio interminável
ininterrupto.

domingo, 8 de julho de 2012

Lições da Tarde - Ronaldo Monte


Lições da Tarde

Ronaldo Monte


Com a tarde nova
aprendo que tenho sombra

Com a tarde alta
aprendo a cair em silêncio

Com o fim da tarde
aprendo a ir embora

Com a tarde morta
aprendo a lição do nada.

sábado, 7 de julho de 2012

Partitura com Lua - Dora Ferreira da Silva


Partitura com Lua

Dora Ferreira da Silva

Notação de pássaros
no fio da rua:
mínimas semínimas pausas.
Sobre o piano rosas estremecem.
Cadências de alma sobressaltam um público
desalento e ao relento ressoam
algumas dissonâncias (tropel de potros
presos numa sala). Mas por acaso em pura sinfonia
pássaros refazem a partitura
no heptacorde dos fios da rua.
Ei-la tão plena do dia findo azulado —
a lua soberana e alta
do sono deste outono.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Lua Adversa - Cecília Meireles


Lua Adversa

Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

O Quarto Branco - Charles Simic


O Quarto Branco

Charles Simic


O óbvio é difícil de
provar. Muitos preferem
o oculto. Eu também preferia.
Eu escutava as árvores.

Elas guardavam um segredo
que estavam prestes
a me revelar —
e não o fizeram.

Veio o verão. Cada árvore
de minha rua tinha sua própria
Xerazade. Minhas noites
faziam parte de suas histórias

selvagens. Entrávamos
em casas escuras,
casas sempre mais escuras,
silenciosas e abandonadas.

Havia alguém de olhos fechados
nos pisos superiores.
O medo e o fascínio me
mantinham bem desperto.

A verdade é nua e crua,
disse a mulher
que sempre se vestiu de branco.
Ela não saiu muito de seu quarto.

O sol apontava uma ou duas
coisas que tinham sobrevivido
intactas na longa noite.
As coisas mais simples,

difíceis em sua obviedade.
Essas não faziam barulho.
Era um dia do tipo
que as pessoas chamam "perfeito".

Deuses disfarçados de
grampos de cabelo, espelho de mão,
um pente com um dente faltando?
Não! Não era isso.

Apenas as coisas como são,
mudas, imóveis, sem piscar,
naquela luz brilhante —
e as árvores esperando a noite.