sábado, 30 de junho de 2012

Ecos d’Alma - Augusto dos Anjos


Ecos d’Alma

Augusto dos Anjos


Oh! madrugada de ilusões, santíssima,
Sombra perdida lá do meu Passado,
Vinde entornar a clâmide puríssima
Da luz que fulge no ideal sagrado!


Longe das tristes noutes tumulares
Quem me dera viver entre quimeras,
Por entre o resplandor das Primaveeras
Oh! madrugada azul dos meus sonhares;


Mas quando vibrar a última balada
Da tarde e se calar a passarada
Na bruma sepulcral que o céu embaça,


Quem me dera morrer então risonho,
Fitando a nebulosa do meu Sonho
E a Via-Láctea da Ilusão que passa!

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Aqui os telhados - José Chagas


Aqui os telhados

José Chagas


Aqui os telhados
brotam como roças.
São vales plantados
de saudades nossas,

suspensos jardins
de uma babilônia
de sonhos afins
e de lenda errônea.

Aqui as lembranças
pastam, nas ruínas,
verdes folhas mansas
de saudades finas.

A memória come
desse verde estranho
e os dias em fome
trazem seu rebanho

para alimentar-se
durante o inverso
no verde disfarce
desse sonho eterno.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Canção para uma Valsa Lenta - Mário Quintana


Canção para uma Valsa Lenta

Mário Quintana

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto.., de medo...

Minha vida não foi um romance,
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida.., passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Ja se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso.., de um gesto... um olhar...

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Manual da Máquina CDA - Armando Freitas Filho


Manual da Máquina CDA

Armando Freitas Filho


A máquina é de pedra e pensamento.
Funciona sem água, deslizando
seu lençol de laje e lembrança
aberto e desperto por natureza.
Tem por motor o atrito, a tração
a alavanca que levanta quem lê
e o modela, diferente, a cada passada
pois se faz também diversa:
novos perfis que se enfrentam
assimétricos, e que não esperam
o encaixe certo, feito à regua
mas o impossível, irregular, sem
efes-e-erres, com recortes irritados
se aproximando, como no boxe —
através do choque, onde se juntam —
íntimos, podendo parecer ternos
apesar dos dentes, roldanas, o amor
arranca, em chão de escorpião.
Quando revista, de perto, por dentro
a máquina — que não se passa a limpo —
se compreende um pouco do engenho
do mecanismo de suas linhas partidas.

terça-feira, 26 de junho de 2012

A Minha Tragédia - Florbela Espanca


A Minha Tragédia

Florbela Espanca

Tenho ódio à luz e raiva à claridade
Do sol, alegre, quente, na subida.
Parece que minh’alma é perseguida
Por um carrasco cheio de maldade!

Ó minha vã, inútil mocidade,
Trazes-me embriagada, entontecida!…
Duns beijos que me deste noutra vida,
Trago em meus lábios roxos, a saudade!…

Eu não gosto do sol, eu tenho medo
Que me leiam nos olhos o segredo
De não amar ninguém, de ser assim!

Gosto da Noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!…

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Dois e Dois são Quatro - Ferreira Gullar


Dois e Dois são Quatro

Ferreira Gullar

Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena

Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.

domingo, 24 de junho de 2012

Ah quanta melancolia! - Fernando Pessoa


Ah quanta melancolia!

Fernando Pessoa

Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!

Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada –
Deixai-os, que é tudo assim.

Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego –
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.

sábado, 23 de junho de 2012

Mal Secreto - Raimundo Correa


Mal Secreto

Raimundo Correa

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Louco (Hora do delírio) - Junqueira Freire


Louco (Hora do delírio)

Junqueira Freire

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha:
Suas idéias não cabiam nele;
Seu corpo é que lutou contra su'alma,
E nessa luta foi vencido aquele.

Foi uma repulsão de dois contrários;
Foi um duelo, na verdade, insano:
Foi um choque de agentes poderosos;
Foi o divino a combater co'o humano.

Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe do nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.

Agora, sim — o espírito mais livre
Pode subir às regiões supernas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Ou sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas.
E zombando o chamais, portanto: — um louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre.
Aproxima-se mais à essência etérea.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A uma senhora natural do Rio de Janeiro, onde se achava então o autor - Basílio da Gama


A uma senhora natural do Rio de Janeiro, onde se achava então o autor

Basílio da Gama

Já, Marfiza cruel, me não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Que inda te espero ver por causa d’elas,
Arrependida de ter sido ingrata.

Com o tempo, que tudo desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrelas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’oiro converte-se em prata.

Pois se sabes que a tua formosura
Por força há de sofrer da idade os danos,
Porque me negas hoje esta ventura?

Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco aflor dos anos.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Soneto do Corifeu - Vinícius de Morais


 Soneto do Corifeu

Vinícius de Morais

São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida

E se ao luar que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
e que a vida não quer, de tão perfeita.

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Eterno/Manhã - Giuseppe Ungaretti


Eterno

Giuseppe Ungaretti



Entre uma flor colhida e outra ofertada
o inexprimível nada






Manhã
Santa Maria La Longa, 26 de janeiro de 1917

Giuseppe Ungaretti



Ilumino-me
de imenso

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Poema Quase Explicação - Moacyr Félix


Poema Quase Explicação

Moacyr Félix


Luzes cortaram mais uma vez a noite básica
e desenharam o mundo em que vivemos.

E as estrelas derramaram pedra e cal
e construíram em cada olhar muralhas
onde fonte magra pinga sol e lua,
— e o relógio é um deus cantando as horas
horas de pedra e cal, prontas para o nada.

Simplificado como uma lágrima
cruzaste a tua ponte de meninos mortos:
não mais o refletido caminhar
de teus passos na noite iluminada,
mas o descer com os olhos a ladeira
e deixá-los no cárcere sem portas
onde os ratos e os anjos se devoram.

Impassível como um tronco de árvore, onde
os homens gravam a canivete o que calaram.

domingo, 17 de junho de 2012

Uma Espécie de Canção - William Carlos Williams



Uma Espécie de Canção

William Carlos Williams

Que a cobra fique à espera sob
suas ervas daninhas
e que a escrita se faça
de palavras, lentas e prontas, rápidas
no ataque, quietas na tocaia,
sem jamais dormir.

- pela metáfora reconciliar
as pessoas e as pedras.
Compor (Idéias
só nas coisas) Inventar!
Saxífraga é a minha flor que fende
as rochas.

sábado, 16 de junho de 2012

Traduzir-se - Ferreira Gullar


Traduzir-se

Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

sexta-feira, 15 de junho de 2012

No poema - Sophia de Mello Breyner Andresen


No poema

Sophia de Mello Breyner Andresen

Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Depois da Orgia - Augusto dos Anjos


Depois da Orgia

Augusto dos Anjos


O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!


Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.


Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,


Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Poema do Retorno - Francisco Carvalho


Poema do Retorno

Francisco Carvalho

a terra cobra
o que do homem
nada sobra

cobra o ouro
cobra a prata
cobra o cobre

cobra o vento
cobra o evento
cobra o invento

cobra o osso
cobra a carne
cobra o remorso.

cobra o sonho
cobra a raiva
cobra a calva.


cobra o cio
cobra o aço
cobra o ócio.

cobra a escória
cobra a cárie
cobra a memória.

cobra o modo
cobra o medo
cobra o arremedo.

cobra a febre
cobra a fibra
cobra a vida.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Lavoura Azul - José Chagas


Lavoura Azul

José Chagas

Trabalho nuvens como quem trabalha
o chão que é seu, mas eu não tenho chão.
Cultivador da natureza falha,
planto no azul o que de azul me dão.

Sobre o campo de nuvens cresce a palha
de sonho e cobre a minha solidão.
E esse abrigo de sonhos me agasalha
contra os falsos azuis que vêm e vão.

Minha roça no ar produz estrelas,
mas eu não tenho mãos para colhê-las,
nesta safra de azul que é nova e antiga.

Sou lavrador do quanto não se lavra
e preciso que eu ceife na palavra
o maduro do azul e a sua espiga.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O Último Dia - Helena Ortíz


O Último Dia

Helena Ortíz


o desejo do rei: a visão dos píncaros
ouvir cantar o pássaro da glória
mas agora
onde estarão todos pergunta o silêncio
nos corredores do palácio
ninguém virá para dizer: acabou
o fracasso não admite réplica
nem retórica pensa o rei enquanto
tira as calças e repara
no espelho
que a vaidade é infiel
e a glória
muito mais
que um par de pernas claudicantes

domingo, 10 de junho de 2012

Língua-Mar - Adriano Espínola


Língua-Mar

Adriano Espínola


A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa, a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro.
Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores-navegantes
atravessa a caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.

sábado, 9 de junho de 2012

Amor, co a esperança já perdida - Camões


Amor, co a esperança já perdida

Camões

Amor, co a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída
me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar-me, que não sei
tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado,
contenta-te co as lágrimas que choro.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O Vento - Dora Ferreira da Silva


O Vento

Dora Ferreira da Silva

Na palma do vento
pouso a fronte. Nele confio.
A quem confiaria senão a ele
este rude labor?

Abandono-me à tormenta
(lumes mastros
gaivotas do mar próximo).

Enreda-me a noite.
Mas dele são os dedos leves
que me fecham os olhos. E é manhã.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Quase - Mário de Sá Carneiro


Quase

Mário de Sá Carneiro


Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Plantio - Mário Chamie


Plantio

Mário Chamie

Cava,
então descansa.
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.

Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca; rês, rês de malha.
Cava.

Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de paus.
Cova.

Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o rego
de longo
e forma: nó, nó de resmo.
Joga.

Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.

Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
cava.