O Velho do Restelo
Canto
IV de Os Lusíadas
Luís Vaz de Camões
94
Mas
um velho d'aspeito venerando,
Que
ficava nas praias, entre a gente,
Postos
em nós os olhos, meneando
Três
vezes a cabeça, descontente,
A
voz pesada um pouco alevantando,
Que
nós no mar ouvimos claramente,
C'um
saber só de experiências feito,
Tais
palavras tirou do experto peito:
95
Ó
glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta
vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó
fraudulento gosto, que se atiça
C'uma
aura popular, que honra se chama!
Que
castigo tamanho e que justiça
Fazes
no peito vão que muito te ama!
Que
mortes, que perigos, que tormentas,
Que
crueldades neles experimentas!
96
Dura
inquietação d'alma e da vida,
Fonte
de desamparos e adultérios,
Sagaz
consumidora conhecida
De
fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te
ilustre, chamam-te subida,
Sendo
dina de infames vitupérios;
Chamam-te
Fama e Glória soberana,
Nomes
com quem se o povo néscio engana!
97
A
que novos desastres determinas
De
levar estes reinos e esta gente?
Que
perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo
dalgum nome preminente?
Que
promessas de reinos, e de minas
D'ouro,
que lhe farás tão facilmente?
Que
famas lhe prometerás? que histórias?
Que
triunfos, que palmas, que vitórias?
98
Mas
ó tu, geração daquele insano,
Cujo
pecado e desobediência,
Não
somente do reino soberano
Te
pôs neste desterro e triste ausência,
Mas
inda doutro estado mais que humano
Da
quieta e da simples inocência,
Idade
d'ouro, tanto te privou,
Que
na de ferro e d'armas te deitou:
99
Já
que nesta gostosa vaidade
Tanto
enlevas a leve fantasia,
Já
que à bruta crueza e feridade
Puseste
nome esforço e valentia,
Já
que prezas em tanta quantidades
O
desprezo da vida, que devia
De
ser sempre estimada, pois que já
Temeu
tanto perdê-la quem a dá:
100
Não
tens junto contigo o Ismaelita,
Com
quem sempre terás guerras sobejas?
Não
segue ele do Arábio a lei maldita,
Se
tu pela de Cristo só pelejas?
Não
tem cidades mil, terra infinita,
Se
terras e riqueza mais desejas?
Não
é ele por armas esforçado,
Se
queres por vitórias ser louvado?
101
Deixas
criar às portas o inimigo,
Por
ires buscar outro de tão longe,
Por
quem se despovoe o Reino antigo,
Se
enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas
o incerto e incógnito perigo
Por que
a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te
senhor, com larga cópia,
Da
Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
102
Ó
maldito o primeiro que no mundo
Nas
ondas velas pôs em seco lenho,
Dino
da eterna pena do profundo,
Se é
justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca
juízo algum alto e profundo,
Nem
cítara sonora, ou vivo engenho,
Te
dê por isso fama nem memória,
Mas
contigo se acabe o nome e glória.
103
Trouxe
o filho de Jápeto do Céu
O
fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo
que o mundo em armas acendeu
Em
mortes, em desonras (grande engano).
Quanto
melhor nos fora, Prometeu,
E
quanto para o mundo menos dano,
Que
a tua estátua ilustre não tivera
Fogo
de altos desejos, que a movera!
104
Não
cometera o moço miserando
O
carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande
Arquiteto co'o filho, dando
Um,
nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum
cometimento alto e nefando,
Por
fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa
intentado a humana geração.
Mísera
sorte, estranha condição!