quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O Poema - Casimiro de Brito

O Poema

Casimiro de Brito

Poemas, sim, mas de fogo
devorador. Redondos como punhos
diante do perigo. Barcos decididos
na tempestade. Cruéis. Mas de uma
crueldade pura: a do nascimento,
a do sono, a da morte.

Poemas, sim, mas rebeldes.
Inteiros como se de água, e,
como ela, abertos à geometria
de todos os corpos. Inteiros
apesar do barro e da ternura
do seu perfil de astros.

Poemas, sim, mas de sangue.
Que esses poemas brotem do
oculto. Que libertem o seu pus
na praça pública. Altos, vibrantes
como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A Flor do Maracujá - Catulo da Paixão Cearense

A Flor do Maracujá

Catulo da Paixão Cearense

Encontrando-me com um sertanejo 
Perto de um pé de maracujá
Eu lhe perguntei: 
Diga-me caro sertanejo 
Por que razão nasce roxa 
A flor do maracujá?
 
Ah, pois então eu lhe conto 
A estória que ouvi contá
A razão pro quê nasce roxa 
A flor do maracujá.
 
Maracujá já foi branco 
Eu posso inté lhe jurá
Mais branco que caridade 
Mais brando do que o luá.
 
Quando a flor brotava nele 
Lá pros confim do sertão
Maracujá parecia 
Um ninho de argodão.
 
Mas um dia, há muito tempo 
Num mês que inté não me alembro 
Se foi maio, se foi junho 
Se foi janeiro ou dezembro.
 
Nosso Sinhô Jesus Cristo 
Foi condenado a morrer
Numa cruz crucificado 
Longe daqui como o quê.
 
Pregaram Cristo a martelo 
E ao ver tamanha crueza 
A natureza inteirinha 
Pois-se a chorar de tristeza.
 
Chorava os campo 
As folha, as ribeira 
Sabiá também chorava 
Nos galho da laranjeira.
 
E havia junto da cruz 
Um pé de maracujá
Carregadinho de flor
Aos pés de Nosso Sinhô.
 
E o sangue de Jesus Cristo 
Sangue pisado de dor
Nos pé do maracujá 
Tingia todas as flor.
 
Eis aqui seu moço
A estória que ouvi contá
A razão pro quê nasce roxa 
A flor do maracujá.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Canção do Exílio - Dantas Bastos

Canção do Exílio

Dantas Bastos


Alma,
Pássaro solitário,
Como é difícil abranger-te!
Nem sei como defender-te,
Incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
Visitas todas as terras,
E te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

domingo, 28 de agosto de 2011

As Três Palavras Mais Estranhas - Wislawa Szymborska

As Três Palavras Mais Estranhas


Wislawa Szymborska




Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.

sábado, 27 de agosto de 2011

Na Corda Bamba - Cacaso

Na Corda Bamba



Cacaso




Poesia
Eu não te escrevo
Eu te
Vivo

E viva nós!

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas – Fragmentos

Guimarães Rosa

Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.

O que lembro, tenho. 

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. 

Toda saudade é uma espécie de velhice.

A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.

Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.

Manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Desejar Ser - Manoel de Barros

Desejar Ser

Manoel de Barros

Nasci para administrar o à-toa
                                  o em vão
                                  o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
                              de pessoas com rãs
                              de pessoas com pedras
                              etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Comigo me Desavim - Sá de Miranda

Comigo me Desavim

Sá de Miranda


Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Canção de Outono - Paul Verlaine

Canção de Outono

 Paul Verlaine

Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.

E soluçando,
Pálido, quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doidos
De outrora.

E vou à toa
No ar mau que voa.
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Canção do Exílio - Gonçalves Dias

Canção do Exílio
Gonçalves Dias
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

domingo, 21 de agosto de 2011

Motivo - Cecília Meireles

Motivo

Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

sábado, 20 de agosto de 2011

O tempo nos desfolha - Francisco Carvalho

O tempo nos desfolha

Francisco Carvalho

O tempo nos desfolha
com sua foice de murmúrios


somos o rebanho de cabras
pastando o caos


somos os tufos de relva
nas frestas da rocha
batida pelo mar


onde a nau de Ulisses
ainda ancora


somos a escória do mito
a rota em que navega
a nossa penúria.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Tenho uma folha branca... - Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar



Tenho uma folha branca
          e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
          e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
          e limpa à minha espera:

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ismália - Alphonsus de Guimaraens

Ismália

 Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Embriaguem-se - Charles Baudelaire

Embriaguem-se (Enivrez-vous)

Charles Baudelaire

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Poema da Necessidade - Carlos Drummond de Andrade

Poema da Necessidade

Carlos Drummond de Andrade

É preciso casar João,
é preciso suportar, Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.

domingo, 14 de agosto de 2011

Os Poemas - Mário Quintana

Os Poemas

Mário Quintana


Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

sábado, 13 de agosto de 2011

A obsessão do sangue - Augusto dos Anjos

A obsessão do sangue

Augusto dos Anjos

Acordou, vendo sangue... — Horrível! O osso
Frontal em fogo... Ia talvez morrer,
Disse. olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! certamente não podia ser!

Levantou-se. E eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!

No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão ...

E amou, com um berro bárbaro de gozo,
o monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Reflexão Nº 1 - Murilo Mendes

Reflexão Nº 1

                                                          Murilo Mendes


Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.


Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Quiriri/O Pensamento/Noturno - Guilherme de Almeida

QUIRIRI
Guilherme de Almeida


Calor. Nos tapetes
tranqüilos da noite, os grilos
fincam alfinetes.



O Pensamento
Guilherme de Almeida

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.


Noturno
Guilherme de Almeida

Na cidade, a lua:
a jóia branca que bóia
na lama da rua.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Testamento do Homem Sensato - Carlos Pena Filho

Testamento do Homem Sensato

Carlos Pena Filho

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim...”
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em vôo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Ouço Uma Fonte - Augusto Frederico Schmidt

Ouço Uma Fonte

Augusto Frederico Schmidt

Ouço uma fonte
É uma fonte noturna
Jorrando.
É uma fonte perdida
No frio.
É uma fonte invisível.
É um soluço incessante,
Molhado, cantando.
 

É uma voz lívida.
É uma voz caindo
Na noite densa
E áspera.
 

É uma voz que não chama.
É uma voz nua.
É uma voz fria.
É uma voz sozinha.

É a mesma voz.
É a mesma queixa.
É a mesma angústia,
Sempre inconsolável.
 

É uma fonte invisível,
Ferindo o silêncio,
Gelada jorrando,
Perdida na noite.
É a vida caindo
No tempo!

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O Pulsar - Augusto de Campos

O Pulsar
                                                                        Augusto de Campos




domingo, 7 de agosto de 2011

Apagar-me/Acordei Bemol - Paulo Leminski

Apagar-me
Paulo Leminski

 

Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.



 
Acordei bemol
Paulo Leminski
 

acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido

sábado, 6 de agosto de 2011

O Bicho - Manuel Bandeira

O Bicho

Manuel Bandeira


 
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.


O bicho, meu Deus, era um homem.

 

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Ah... Se Sesse - Zé da Luz

Ah… Se Sesse

Zé da Luz


 
Se um dia nós se gostasse
Se um dia nós se queresse
Se um dia nós se empareasse
Se juntim nós dois vivesse
Se juntim nós dois morasse
Se juntim nós dois drumisse
Se juntim nós dois morresse
Se pro céu nós assubisse
Mas porém se acontecesse
De São Pedro não abrisse
A porta do céu
E fosse te dizer qualquer tolice.

E se eu me arreliasse
E tu cum eu insistisse
Pra que eu me arresorvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvez que nós dois ficasse
Tarvez que nós dois caisse
E o céu furado arriasse
E as virge toda fugisse!


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Mundo Grande - Carlos Drummond de Andrade

Mundo Grande


Carlos Drummond de Andrade



Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho  cruamente
nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu
esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros,
carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens.
as diferentes dores dos homens.
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar
tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos — voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei

países imaginários, fáceis de habitar.
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e
convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo
todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! Nós te criaremos.