sábado, 31 de dezembro de 2011

Passagem do Ano - Carlos Drummond de Andrade

Passagem do Ano

Carlos Drummond de Andrade


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, 

                  [doce morte com sinfonia e coral, 
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...


Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.

A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano Novo - Ferreira Gullar

Ano Novo

Ferreira Gullar

Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Olho muito tempo o corpo de um poema - Ana Cristina Cesar

Olho muito tempo o corpo de um poema

Ana Cristina Cesar


Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Fila Indiana - Nauro Machado

Fila Indiana

Nauro Machado

Um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, continuam

(a conduzir seus madeiros
na perícia dos próprios dramas)

um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, e de novo

um atrás do outro, atrás um do outro,
até a surdez final do pó.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Escolha de Túmulo - José Paulo Paes

Escolha de Túmulo

José Paulo Paes

Onde os cavalos do sono
batem cascos matinais.

Onde o mundo se entreabre
em casa, pomar e galo.

Onde ao espelho duplicam-se
as anêmonas do pranto.

Onde um lúcido menino
propõe uma nova infância.

Ali repousa o poeta.

Ali um vôo termina,
outro vôo se inicia.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Quadrilha - Carlos Drummond de Andrade

Quadrilha

Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o
convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
Fernandes
que não tinha entrado na história.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Versos de Natal - Manuel Bandeira

Versos de Natal

 Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Soneto de Natal - Machado de Assis

Soneto de Natal

Machado de Assis


Um homem, — era aquela noite amiga,
noite cristã, berço no Nazareno, —
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,

quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Natal - Fernando Pessoa

Natal

Fernando Pessoa


Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Crepúsculo - Cancão

Crepúsculo

Cancão

O céu se abre num leque de rubor
A luz solar cristaliza o panorama
Se escoa e tremula sobre a rama
Tornando toda a pelúcia multicor

Os horizontes circulam de outra cor
A penumbra parece arder em chama
A última luz no ocaso se derrama
Num quadro mágico, sublime, encantador

O sol, guerreiro que veio do Oriente
Passou o dia lutando ferozmente
Da guerra trouxe seu golpe assinalado

Agoniza agora, e através da tela infinda
Pela grimpa da serra mostra ainda
A metade do rosto ensangüentado.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A Partida - Dante Milano

A Partida

Dante Milano

Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Gesso - Manuel Bandeira

Gesso

Manuel Bandeira

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
— O gesso muito branco, as linhas muito puras —
Mal sugeria imagem de vida
(embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
                                                 [ pátina amarelo-suja.
Os meus olhos de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de  
                                                                        [tísico
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes
       [ fragmentos, recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o
                                          [ sujo mordente de pátina...

Hoje esse gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Mundo Pequeno – I - Manoel de Barros

Mundo Pequeno – I

Manoel de Barros

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

domingo, 18 de dezembro de 2011

José - Carlos Drummond de Andrade

José


Carlos Drummond de Andrade


E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

sábado, 17 de dezembro de 2011

Poema da Devastação - Carlos Nejar

Poema da Devastação

Carlos Nejar

Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.

Há uma devastação
nas águas e nos seres;
os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão de escamas.

Há uma devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A educação pela pedra - João Cabral de Melo Neto

A educação pela pedra

João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.


Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

não consigo me livrar desse poema - Romério Rômulo

não consigo me livrar desse poema

Romério Rômulo

tenho medo.
o medo de viver sob essa pele,
o medo das mulheres que me absolvem do pecado,
o medo do câncer que termina em morte.
medo das estradas sem caminho,
do envolver o espanto do meu olho
e derivar os poemas da noite.
medo dos cachorros é o que tenho.
tenho medo dos cavalos,
da beleza que destilam
quando eu não consigo a coragem de vê-los.
tenho medo do olhar,
de todos os olhares:
a vida lhes pulsa o meu medo
e só me cabe retê-los um pouco.

o grande medo,
o medo que estarrece,
o medo que me promete a explosão da carne,
é o medo da pele que me come
e eu não vejo.

não sei da vida,
não sei da morte e suas atrofias
e me revelo no medo.
tenho medo da loucura,
das mentiras e verdades que me roem,
do meu sono e da minha insônia.
o suicídio é um alento carregado de medo:
o medo do fracasso.

a coragem
é o arremedo
da minha clave escondida.

de todos os medos
arranquei meu dia
e não consigo me livrar desse poema.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Maracatu - Ascenso Ferreira

Maracatu

Ascenso Ferreira

Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...

          — Luanda, Luanda, onde estás?
          Luanda, Luanda, onde estás?

As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...

          — Luanda, Luanda, onde estás?
          Luanda, Luanda, onde estás?

A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...

          — Luanda, Luanda, onde estou?
          Luanda, Luanda, onde estou?

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Poema ao Farol da Ilha Rasa - Adalgisa Nery

Poema ao Farol da Ilha Rasa

Adalgisa Nery

O aviso da vida
Passa a noite inteira dentro do meu quarto
Piscando o olho.
Diz que vigia o meu sono
Lá da escuridão dos mares
E que me pajeia até o sol chegar.
Por isso grita em cores
Sobre meu corpo adormecido ou
Dividindo em compassos coloridos
As minhas longas insônias.
Branco
Vermelho
Branco
Vermelho
O farol é como a vida
Nunca me disse: Verde.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Risco - Eunice Arruda

Risco

Eunice Arruda

Um poema livre
da gramática, do som
das palavras
livre
de traços

Um poema irmão
de outros poemas
que bebem a correnteza
e brilham
pedras ao sol

Um poema
sem o gosto
de minha boca
livre da marca
de dentes em seu dorso
Um poema nascido
nas esquinas nos muros
com palavras pobres
com palavras podres
e
que de tão livre

traga em si a decisão
de ser escrito ou não

domingo, 11 de dezembro de 2011

Furo o sinal vermelho - Armando Freitas Filho

Furo o sinal vermelho

Armando Freitas Filho


Furo o sinal vermelho
que não me estanca
sangrando a seta do lado esquerdo
me enfio por agulhas, gargalos
gargantas, o mar está à margem
tem pressa, mas não sai do lugar
engarrafado, e ainda que felino
enferruja em frente à praia
enquanto rodo o Rio todo e tomo
sucessivos ônibus, táxis, metrô
e cada dia é irreparável
o corpo não tem férias
vai no arrastão, com a roupa da hora
sempre ao alcance de balas além
não fica em nenhuma parada
não salta, passa do ponto
queima a inflamável vida
enquadrado pelo sol, carburante
vencendo túneis
nadando no seu próprio sangue.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Go Back - Torquato Neto

Go Back

Torquato Neto



 
Você me chama
Eu quero ir pro cinema
você reclama
meu coração não contenta
você me ama
mas de repente a madrugada mudou
e certamente
aquele trem já passou
e se passou
passou daqui pra melhor,
foi!

Só quero saber
do que pode dar certo
não tenho tempo a perder



você me pede
quer ir pro cinema
agora é tarde
se nenhuma espécie
de pedido
eu escutar agora
agora é tarde
tempo perdido
mas se você não mora, não morou
é porque não tem ouvido
que  agora é tarde
- eu tenho dito -
o nosso amor michou
(que pena) o nosso amor, amor
e eu não estou a fim de ver cinema
(que pena)


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Poema Obsceno - Ferreira Gullar

Poema Obsceno

Ferreira Gullar

Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira 


Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
- e espreitam.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

VII/Rio de Janeiro - Carlos Drummond de Andrade

VII/Rio de Janeiro

Carlos Drummond de Andrade

Fios nervos riscos faíscas.
As cores nascem e morrem
com impudor violento.
Onde meu vermelho? Virou cinza.

Passou boa! Peço a palavra!
Meus amigos estão todos satisfeitos
com a vida dos outros.
Fútil nas sorveterias.
Pedante nas livrarias...
Nas praias nu nu nu nu nu nu.
Tu tu tu tu tu no meu coração.

Mas tantos assassinatos, meu Deus.
E tantos adultérios também.
E tantos tantíssimos contos-do-vigário...
(Este povo quer me passar a perna.)

Meu coração vai molemente dentro do táxi.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Rói - Carlito Azevedo

Rói

Carlito Azevedo


Rói qualquer possibilidade de sono
essa minimalíssima música
de cupins esboroando
tacos sob a cama

imagino a rede de canais
que a perquirição predatória
possa ter riscado
pelo madeirame apodrecido

se aguço o ouvido
capto súbito
o mundo dos vermes

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Soneto da separação - Vinícius de Morais


Soneto da separação

Vinícius de Morais



De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
 
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
 

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Os Parceiros - Mario Quintana

Os Parceiros

Mario Quintana


Sonhar é acordar-se para dentro:
de súbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.

Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste...
E, a cada parada uma pancada,
o coração, exausto, ainda insiste.

Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro...eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-se

numa velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce...
Como também disfarce é a minha vida!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Dircéia - Tomás Antônio Gonzaga

Dircéia

Tomás Antônio Gonzaga


É gentil, é prendada a minha Altéia;
As graças, a modéstia de seu rosto
Inspiram no meu peito maior gosto
Que ver o próprio trigo quando ondeia.

Mas, vendo o lindo gesto de Dircéia
A nova sujeição me vejo exposto;
Ah! que é mais engraçado, mais composto
Que a pura esfera, de mil astros cheia!

Prender as duas com grilhões estritos
É uma ação, ó deuses, inconstante,
Indigna de sinceros, nobres peitos.

Cupido, se tens dó de um triste amante,
Ou forma de Lorino dois sujeitos,
Ou forma desses dois um só semblante.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Nós - Guilherme de Almeida

Nós

Guilherme de Almeida

Mas não passou sem nuvem de tristeza
esse amor que era toda a tua vida,
em que eu tinha a existência resumida
e a viva chama de minha alma, acesa.


Nem lemos sem vislumbre de incerteza
a página do amor, lida e relida,
mas pouquíssimas vezes entendida,
sempre cheia de engano e de surpresa,


Não. Quantas vezes ocultei a minha
dor num sorriso! Quanta vez sentiste
parar, medroso, o coração de gelo!


- É que nossa alma às vezes adivinha
que perder um amor não é tão triste
como pensar que havemos de perdê-lo.
 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Aqui Está Minha Vida - Cecília Meireles

Aqui Está Minha Vida

                                                                       Cecília Meireles

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Aqui morava um rei - Ariano Suassuna

Aqui morava um rei

Ariano Suassuna


Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.