sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Estágio do Espelho/Indefinição - Cacaso

Estágio do Espelho

Cacaso

Ah os olhos que me viam!
Como eu era belo e gentil a certos olhos que me viam!
Agora, diante de mim mesmo,
não suporto esta coisa horrenda que brota
de minhas macias faces, que morre e nasce.
Nos olhos de quem terei perdido a minha face?


Indefinição
Cacaso

Pois assim é a poesia:
esta chama tão distante mas tão perto de
estar fria.


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Soneto do Desmantelo Azul - Carlos Pena Filho

Soneto do Desmantelo Azul

Carlos Pena Filho

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
 

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Carta - Carlos Drummond de Andrade

Carta

Carlos Drummond de Andrade


Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Apenas Desfigurada - Paul Eluard

Apenas Desfigurada

Paul Eluard

Adeus tristeza
Bom dia tristeza
Estás inscrita nas linhas do teto
Estás inscrita nos olhos que amo
Não chegas a ser a miséria
Pois os lábios mais pobres te denunciam
Por um sorriso

Bom dia tristeza
Amor dos corpos amáveis
Potência do amor
Cuja amabilidade surge
Como um monstro sem corpo
Cabeça desapontada
tristeza belo rosto

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Eternidade - Arthur Rimbaud

A Eternidade

Arthur Rimbaud


De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Como o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

domingo, 25 de setembro de 2011

Autopsicografia - Fernando Pessoa

Autopsicografia

Fernando Pessoa


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


sábado, 24 de setembro de 2011

Ao Tempo - Dante Milano

Ao Tempo

Dante Milano


Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,

Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

16 - Armando Freitas Filho

23

Armando Freitas Filho

Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.

16

Armando Freitas Filho


               Para Mário Rosa

Escrever é arriscar tigres
ou algo que arranhe, ralando
o peito na borda do limite
com a mão estendida
até a cerca impossível e farpada
até o erro — é rezar com raiva.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Paulo Leminski



Paulo Leminski

duas folhas na sandália

o outono
também quer andar

*

             minha alma breve breve
o elemento mais leve
             na tabela de mendeleiev

*


lamente
uma
        vez

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

N.Y. - Ezra Pound

N.Y.

Ezra Pound

Minha cidade, minha amada, minha branca!
         Ah, esbelta,
Ouça! Ouça-me, vou soprar uma alma dentro de ti.
Delicadamente pela flauta, atenta-me!

Agora sei que sou louco,
Porque há aqui um milhão de pessoas na fúria do tráfego;
Isso não é donzela.
Nem eu poderia tocar uma flauta se a tivesse.

Minha cidade, minha amada,
És uma donzela sem seios,
És esbelta como uma flauta de prata.
Ouça, atente-me!
E eu soprarei uma alma dentro de ti,
E viverás para sempre.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O Espelho - Mario Quintana

O Espelho

Mario Quintana

E como eu passasse por diante do espelho
não vi meu quarto com as suas estantes
nem este meu rosto
onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
janelas onde olham avós hirsutos
e as vovozinhas de saia-balão
Como pára-quedistas às avessas que subissem do
                                      fundo do tempo.

O relógio marcava a hora
mas não dizia o dia. O Tempo,
desconcertado,
estava parado.

Sim, estava parado
Em cima do telhado...
Como um catavento que perdeu as asas!

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Arranjos Para Assobio (IX) - Manoel de Barros

Arranjos Para Assobio (IX)

Manoel de Barros

O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir de roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta.
Uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
Enquanto vida houver

Ninguém é pai de um poema sem morrer


domingo, 18 de setembro de 2011

XLII - Hilda Hist

XLII
Hilda Hist


As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro de tua garganta.
Úmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e de dentes.
Outras de geometria. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia.

As barcas afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder luas de eternidade.
E doutas, de ironia as tuas
Só através de minha vida vão viver.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Canção - Cecília Meireles

Canção

Cecília Meireles

No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo que existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Revisitação - José Paulo Paes

Revisitação

José Paulo Paes

Cidade, por que me persegues?

Com os dedos sangrando
já não cavei em teu chão
os sete palmos regulamentares
para enterrar meus mortos?
Não ficamos quites desde então?

Por que insistes
em acender toda noite
as luzes de tuas vitrinas
com as mercadorias do sonho
a tão bom preço?

Não é mais tempo de comprar.
Logo será tempo de viajar
para não se sabe onde.
Sabe-se apenas que é preciso ir
de mãos vazias.

Em vão alongas tuas ruas
como nos dias de infância,
com a feérica promessa
de uma aventura a cada esquina.
Já não as tive todas?

Em vão os conhecidos me saúdam
do outro lado do vidro,
desse umbral onde a voz
se detém interdita
entre o que é e o que foi.

Cidade, por que me persegues?
Ainda que eu pegasse
o mesmo velho trem,
ele não me levaria
a ti, que não és mais.

As cidades, sabemos,
são no tempo, não no espaço,
e delas nos perdemos
a cada longo esquecimento
de nós mesmos.

Se já não és e nem eu posso
ser mais em ti, então que ao menos
através do vidro
através do sonho
um menino e sua cidade saibam-se afinal

intemporais, absolutos.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Tecendo a Manhã - João Cabral de Melo Neto

Tecendo a Manhã

João Cabral de Melo Neto
1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Poética - Vinícius de Morais

Poética

Vinícius de Morais

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A esperança - Augusto dos Anjos

A esperança

Augusto dos Anjos

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.


Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?


Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!


E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!

domingo, 11 de setembro de 2011

Sonho - Manuel Bandeira

Sonho

Manuel Bandeira

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.
Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.
Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o que?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.
Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.

sábado, 10 de setembro de 2011

Impressão IV - e.e. cummings

Impressão IV

e.e. cummings


as horas sobem apagando estrelas e é
madrugada
nas ruas do céu a luz anda espalhando poemas

na terra uma vela é
extinta           a cidade
acorda

com uma canção em sua
boca tendo a morte em seus olhos

e é madrugada
o mundo
continua a assassinar os sonhos. . . .

vejo na rua em que homens
fortes cavam pão
e eu

vejo os rostos brutais das
pessoas contentes horríveis perdidas cruéis
                                        felizes

e é dia,

no espelho
vejo um homem frágil
sonhando
sonhos
sonhos no espelho

e
é crespúsculo           na terra

uma vela se acende
e é escuro.
as pessoas estão em casa
o homem frágil está na cama
a cidade
morre com a morte na boca tendo uma canção
                                        nos olhos
as horas descem,
levando à cena estrelas. . . .

na rua do céu a noite anda espalhando poemas

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Cantei a Poesia - Ricardo Silvestrin

Cantei a Poesia

Ricardo Silvestrin


cantei a poesia
e ela ficou comigo
por um dia

agora que eu não vivo sem ela
me esnoba
só vem quando quer

ai, mulher difícil
se lhe dou bandeira
ela quer vinícius


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Ulisses - Octávio Mora

Ulisses
                                                                                                                            Octávio  Mora
Ulisses em Ítaca, vivo ausente
Talvez seja resíduo da viagem,
mas é tão pouco minha esta paisagem
que só posso estar longe desta gente:
Se foi minha, cortaram-na tão rente
que a memória mudou toda a folhagem –
falávamos idêntica linguagem –
Falo agora linguagem diferente:
Vivo em Ítaca ausente: minha fronte
alargou-se, meus olhos são maiores,
e na memória trago outros países:
Contudo, já foi meu este horizonte,
já fui jovem aqui : olho arredores,
E vejo Ítaca ao longe, sem raízes.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Soneto burocrático - José Lino Grünewald

Soneto burocrático

José Lino Grünewald


Salvo melhor juízo doravante,
Dessarte, data vênia, por suposto,
Por outro lado, maximé, isso posto,
Todavia deveras, não obstante

Pelo presente, atenciosamente,
Pede deferimento sobretudo,
Nestes termos, quiçá, aliás, contudo
Cordialmente alhures entrementes

Sub-roga ao alvedrio ou outrossim
Amiúde nesse ínterim, senão
Mediante qual mormente, oxalá quão

Via de regra te-lo-ão enfim
Ipso facto outorgado, mas porém
Vem substabelecido assim, amém.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Ecce - Duda Machado

Ecce

Duda Machado


não sou
o que
nem
o quem
do que
digo

em suma:
poeta
o sumo
mendigo

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

eles os - Ricardo Chacal

eles os

Ricardo Chacal



eles são assim mesmo:
estranhos bizarros
quimeras sob os cabelos


eles são assim mesmo:
búfalos pirados
e a arrogância necessária
para sobreviver


quando você vir um poeta
tire o chapéu:
ainda não nasceu
quem possa matá-lo


eles são assim mesmo:
insolentes.

domingo, 4 de setembro de 2011

Quanto eu saiba ela talvez fosse mais feliz... - Lawrence Ferlinghetti

Quanto eu saiba ela talvez fosse mais feliz...
Lawrence Ferlinghetti

Quanto eu saiba ela talvez fosse mais feliz
                                           que qualquer um
aquela anciã solitária de xale
                     no trem com caixotes de laranja
    com o passarinho manso
                                      no seu lenço
              e sussurrando-lhe
                                     todo o tempo
                                               mia mascotta
        mia mascotta
         sem que nenhum dos excursionistas de
              domingo com seus cestos e garrafas
                   prestasse qualquer
                                               atenção
          e o vagão
                        chiava através dos trigais
              tão devagar que

                                     borboletas

                               entravam e saíam

sábado, 3 de setembro de 2011

Corpo - Armando Freitas Filho

Corpo

Armando Freitas Filho

Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?

Doce máquina
com engrenagem de músculos
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão)

Engenho de febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Soneto Presunçoso - Lêdo Ivo

Soneto Presunçoso

Lêdo Ivo

Que forma luminosa me acompanha
quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz
do meu tempo perdido, e um rio banha
tudo o que caminhei da fonte à foz?

Dos homens desde o berço enfrento a sanha
que os difere da abelha e do albatroz.
Meu irmão, meu algoz! No perde-e-ganha
quem ganhou, quem perdeu, não fomos nós.

O mundo nada pesa. Atlas, sinto
a leveza dos astros nos meus ombros.
Minha alma desatenta é mais pesada.

Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.
Se pergunto, a resposta é dos assombros.
No sol a pino finjo a madrugada.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Amor é um fogo que arde sem se ver - Camões

Amor é um fogo que
arde sem se ver

Camões

Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?