quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Ausência - Carlos Drummond de Andrade

Ausência

Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos  
                                                          [meus braços
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O Sertão - Cancão

O Sertão

Cancão

Sertão rude das secas causticantes
Esfumadas montanhas comburidas
As pessoas, com fome, perseguidas,
Se afastam de ti como emigrantes

Aventureiras, pedestres, viandantes
Muitas vezes demais desprotegidas
Mesmo algumas que são favorecidas
Sentem algo viverem tão distantes

E um dia, movidas de saudade
Deixam pão, deixam lar, felicidade
Em regresso, buscando seu torrão

Como a ave que foge da gaiola
Voa, canta, porém só se consola
Quando volta de novo pra prisão

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Soneto - José Albano

Soneto

José Albano

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.


Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas. tão pouco dura;
E ainda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.


Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com saudades me atormento;


Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.

domingo, 27 de novembro de 2011

Desencanto - Manuel Bandeira

Desencanto

Manuel Bandeira


Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

— Eu faço versos como quem morre.

sábado, 26 de novembro de 2011

Fio - Cecília Meireles

Fio

Cecília Meireles


No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.


Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.


Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...


— Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Cenário - Dante Milano


                          Cenário

Dante Milano



Tudo é só, a montanha é só, o mar é só,
A lua ainda é mais só.
Se encontrares alguém
Ele está só também.

Que fazes a estas horas nesta rua?
Que solidão é a tua
Que te faz procurar
O cenário maior,
O de uma solidão maior que a tua?

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Canção - Tasso da Silveira

Canção

Tasso da Silveira

No fim de contas, um pássaro
cantando na noite densa
é coisa que a gente encontra
muitas vezes, mesmo longe
do vago mundo da lenda.

Alma é dor, mas também êxtase.
E quando menos se espera
da areia surge uma fonte,
nasce uma rosa na sombra,
canta um pássaro na treva.

A amada chegando tímida
é a rosa por que esperamos,
o amigo, uma fonte fresca,
e a lua no céu acesa
vale um pássaro cantando.

Solta um pássaro notívago
profunda e grave cantiga
no entanto pura e singela:
isto ocorre quando o Poeta
canta na noite da vida.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Os Lírios - Henriqueta Lisboa

Os Lírios
Henriqueta Lisboa

Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos — perfeitos! —
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranqüila.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Morrer - Ivan Junqueira

Morrer
Ivan Junqueira

Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;

é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;

é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;

é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir;

é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;

é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.


segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A rosa de Hiroxima - Vinícius de Morais

A rosa de Hiroxima


Vinícius de Morais


Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

domingo, 20 de novembro de 2011

O Poeta é a mãe das armas - Torquato Neto

O Poeta é a mãe das armas

Torquato Neto




O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral -
alô poetas: poesia
no país do carnaval;
alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.
 

O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.
  

A poesia é o pai das ar-
timanhas  de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
poesia poesia poesia poesia!
o poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além de minha bandeira\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\=
sem aura nem baúra, sem nada mais para contar
isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a
r : em primeiríssimo , o lugar. 

poetemos pois

sábado, 19 de novembro de 2011

Serenata Sintética - Cassiano Ricardo

Serenata Sintética


Cassiano Ricardo



                               Lua
                               morta

                                       Rua
                                       torta

                              Tua
                              porta








sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O poeta - Rainer Maria Rilke

O poeta

Rainer Maria Rilke



Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Soneto XI - Francisco Carvalho

Soneto XI

Francisco Carvalho


Quando chegar o tempo do plantio
quero enterrar meu sonho nesta gleba.
Meu sonho e estas visões carbonizadas
pelos ventos peludos desse estio.

Aqui verei meus mortos despertados
pelo nitrir fogoso da alimária.
A ovelha e o boi pastando a eternidade
e as papoulas de arame dos cercados.

Quero enterrar meu sonho e meu suor
nesta gleba adoçada de formigas
onde a aranha teceu seu devaneio.

Aqui virão as cabras do pastor
balir ao sol das ilusões antigas.
Pastar canções e espigas de centeio.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Soneto XIV - Elizabeth Barrett Browning

Soneto XIV

Elizabeth Barrett Browning

Ama-me por amor do amor somente
Não digas: «Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh'alma em comunhão constantemente
Com a sua.» Porque pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
Me hás de querer por toda a eternidade.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Zerando - Armando Freitas Filho

Zerando

Armando Freitas Filho

Abrir as veias e as gavetas:
ávidas, vazias
viradas pelo avesso.
Me despeço de uma vez
longa vida abaixo
mas não avio
nenhuma viagem ou avião.
Não me visto sequer
nem esvaneço
apenas resto
apesar do vento
que me pega de frente
e me entorna todo
pelos olhos.
Defronte, dispara
o dia lá fora
enquanto eu fico aqui
tão fixo e travado
como no começo de tudo.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

domingo, 13 de novembro de 2011

Vencedor - Augusto dos Anjos

Vencedor

Augusto dos Anjos



Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

sábado, 12 de novembro de 2011

Grande Sertão: Veredas – Fragmentos - Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas – Fragmentos

Guimarães Rosa

Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!
O sertão é do tamanho do mundo.
Sertão é dentro da gente. 
O sertão é sem lugar. 
O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. 
O sertão é uma espera enorme.
Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Tecelagem Noturna - Ronaldo Monte

Tecelagem Noturna

Ronaldo Monte


De tua vida por um fio
a morte tece seus panos.

Dia-a-dia, zig-zag,
cresce no chão o novelo
que a sinistra tecelã
virá de noite roubar.

Pé-ante-pé, plec-plec
(a morte usa chinelos),
leva teus fios vividos
pra de noite, tlec-tlec,
alimentar seu tear,

mesclando teu tempo inútil
com o enfado do teu trabalho
num só tecido inconsútil
do teu último agasalho.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Condição Humana - Helena Ortiz

Condição Humana


Helena Ortiz



visto preto e meu marido
é vivo

sou seu lençol
mãe de seu filho ausente

lavo seus colarinhos
não dormimos juntos

juntos
só colocamos

sal nas feridas

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Escapulário - Oswald de Andrade

Escapulário


Oswald de Andrade





No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Escritório - Armando Freitas Filho

Escritório

Armando Freitas Filho



Igual ao que as pedras pesam
os livros lidos, relidos e idos
me carregam, não sei se mais
ou menos, do que aqueles que não.
Do que aqueles tantos fechados
ou só folheados que curvam a tábua
da estante, que cavam um lugar
cerrados, cegos de mim, que vão fundo
mesmo ficando parados — à espera
e que apenas as traças atravessam.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Soneto do Gato Morto - Vinícius de Morais

Soneto do Gato Morto

Vinícius de Morais


Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.

domingo, 6 de novembro de 2011

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada V - VII - Manoel de Barros

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada

Manoel de Barros

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

sábado, 5 de novembro de 2011

Paragem - Dante Milano

Paragem

Dante Milano


Com os meus bois.
Os meus bois que mugem e comem o chão,
Os meus bois parados,
De olhos parados,
Chorando,
Olhando...
O boi da minha solidão,
O boi da minha tristeza,
O boi do meu cansaço,
O boi da minha humilhação.

E esta calma, esta canga, esta obediência.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Noturno - Tasso da Silveira

Noturno

Tasso da Silveira



Veleiro ao cais amarrado
em vago balouço, dorme?
Não dorme. Sonha, acordado,
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.

Se acaso me objetardes
que veleiro não é gente
e, assim, não sonha nem sente,
sem orgulhos nem alardes
eu direi: por que haveria
de falar-vos do homem triste
mas de olhar grave e profundo
que, à amargura acorrentado
sonha, no entanto, que vive
toda a beleza do mundo?

Melhor é dizer: Veleiro...
veleiro ao cais amarrado,
sob as límpidas estrelas.
Vela branca é uma alma trêmula,
sobretudo se cai sombra
do alto abismo constelado.
Veleiro, sim, que não dorme
mas na silente penumbra
sonha, ao balouço, acordado
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O Chamado - Carlos Drummond de Andrade

O Chamado


Carlos Drummond de Andrade


Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o chamado.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Último Fantasma - Castro Alves

Último Fantasma



Castro Alves



Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso, 
Que te elevas da noite na orvalhada? 
Tens a face nas sombras mergulhada... 
Sobre as névoas te libras vaporoso...


Baixas do céu num vôo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
Cerca-te a fronte, ó ser misterioso!...


Onde nos vimos nós? És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte. . . 
Por quem meu peito em sonhos desespera?


Quem és tu? Quem és tu? - És minha sorte! 
És talvez o ideal que est'alma espera! 
És a glória talvez! Talvez a morte!

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Poesia de Finados - Manuel Bandeira

Poesia de Finados


Manuel Bandeira



Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.