segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sinfonia para pressa e presságio - Paulo Leminski

Sinfonia para pressa e presságio

Paulo Leminski

 


          Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
          na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
          Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
          do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
          que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

          Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
          e não cabe mais na sala.

domingo, 30 de outubro de 2011

Ora (direis) ouvir estrelas! - Olavo Bilac

Ora (direis) ouvir estrelas!


Olavo Bilac


“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo 
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, 
Que, para ouvi-Ias, muita vez desperto 
E abro as janelas, pálido de espanto ... 

E conversamos toda a noite, enquanto 
A via láctea, como um pálio aberto, 
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, 
Inda as procuro pelo céu deserto. 

Direis agora: “Tresloucado amigo! 
Que conversas com elas? Que sentido 
Tem o que dizem, quando estão contigo?” 

E eu vos direi: “Amai para entendê-las! 
Pois só quem ama pode ter ouvido 
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

sábado, 29 de outubro de 2011

Meus Livros - Jorge Luis Borges

Meus Livros


                                                Jorge Luis Borges



Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Barro - Francisco Carvalho

Barro

Francisco Carvalho

O barro é a palavra
que te devolve a inocência perdida
o teu passaporte para a criatura.
O teu modo de dizer o que as pessoas
não te disseram nunca.

O barro é a matéria do teu canto
o ouro de tua botija
o amálgama de tua cárie
o salário do teu anonimato
teu sortilégio e tua perdição.

O barro é teu sangue coagulado que teima em protestar
o teu mistério se consumindo
o teu sapato estraçalhado na diáspora
o teu chapéu de luto
a tua solidão de olhos fitos na vida.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Acrobata da Dor - Cruz e Sousa

Acrobata da Dor

Cruz e Sousa


Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta, clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos, retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Lavoisier - Carlos de Oliveira

Lavoisier

Carlos de Oliveira

Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Versos íntimos - Augusto dos Anjos

Versos íntimos

Augusto dos Anjos

Vês?!  Ninguém assistiu ao formidável 
Enterro de tua última quimera. 
Somente a Ingratidão — esta pantera — 
Foi tua companheira inseparável! 

Acostuma-te à lama que te espera! 
O Homem, que, nesta terra miserável, 
Mora, entre feras, sente inevitável 
Necessidade de também ser fera. 

Toma um fósforo.  Acende teu cigarro! 
O beijo, amigo, é a véspera do escarro, 
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 

Se a alguém causa inda pena a tua chaga, 
Apedreja essa mão vil que te afaga, 
Escarra nessa boca que te beija!

domingo, 23 de outubro de 2011

Um novo organismo novo - Jorge Salomão


Jorge Salomão


um novo organismo novo
pássaros despertam manhã
caboclo triste
ar de sertão
vida e homens áridos
com o pé na água do rio corrente
correr trechos
estradas
tampas
boca aberta cariada a sorrir por
montanhas de desconexas palavras
soltas ao vento no balanço da suave
palmeira que brilha nos últimos
raios de sol da tarde de hoje

sábado, 22 de outubro de 2011

Cantiga de Praia - Alphonsus de Guimaraens Filho

Cantiga de Praia


Alphonsus de Guimaraens Filho



Estou sozinho na praia,
estou sozinho e não sei.
Que luz adormece a face
se em gritos já me afoguei?

Estou dançando na praia?
Estou dançando? Não sei.
Eu colho com as mãos da ausência
a rosa que não beijei.

Que luz chega do outro lado,
do outro rio, do outro mar?
Estou sozinho na praia...
Ó mundo, vamos dançar!
 


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Poema - João Cabral de Melo Neto

Poema

João Cabral de Melo Neto


Trouxe o sol à poesia
mas como trazê-lo ao dia?

No papel mineral
qualquer geometria
fecunda a pura flora
que o pensamento cria.

Mas à floresta de gestos
que nos povoa o dia,
esse sol de palavra
é natureza fria.

Ora, no rosto que, grave,
riso súbito abria,
no andar decidido
que os longes media,

na calma segurança
de quem tudo sabia,
no contato das coisas
que apenas coisas via,

nova espécie de sol
eu, sem contar, descobria:
não a claridade imóvel
da praia ao meio-dia,

de aérea arquitetura
ou de pura poesia:
mas o oculto calor
que as coisas todas cria.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Soneto da maioridade - Vinícius de Morais

Soneto da maioridade

Vinícius de Morais


O Sol, que pelas ruas da cidade
Revela as marcas do viver humano
Sobre teu belo rosto soberano
Espalha apenas pura claridade.

Nasceste para o Sol; és mocidade
Em plena floração, fruto sem dano
Rosa que enfloresceu, ano por ano
Para uma esplêndida maioridade.

Ao Sol, que é pai do tempo, e nunca mente
Hoje se eleva a minha prece ardente:
Não permita ele nunca que se afoite

A vida em ti, que é sumo de alegria
De maneira que tarde muito a noite
Sobre a manhã radiosa do teu dia.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Caçar em vão - Armando Freitas Filho

Caçar em vão

Armando Freitas Filho



Às vezes escreve-se a cavalo.
Arremetendo, com toda a carga.
Saltando obstáculos ou não.
Atropelando tudo, passando
por cima sem puxar o freio —
a galope — no susto, disparado
sobre as pedras, fora da margem
feito só de patas, sem cabeça
nem tempo de ler no pensamento
o que corre ou o que empaca:
sem ter a calma e o cálculo
de quem colhe e cata feijão.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

As rosas do tempo - Carlos Drummond de Andrade

As rosas do tempo

Carlos Drummond de Andrade




Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,

as iras e entusiasmos que cultivas
são as rosas do tempo, inquietas, vivas.

Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura a flama.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A solidão e sua porta - Carlos Pena Filho

A solidão e sua porta

Carlos Pena Filho


Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

domingo, 16 de outubro de 2011

Inseto - Ferreira Gullar

Inseto

Ferreira Gullar

Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica

Também mais complexo
                        que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
                       (o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
             ou quem sabe
                                   uma vida.

sábado, 15 de outubro de 2011

O que me dói não é... - Fernando Pessoa

O que me dói não é...

Fernando Pessoa


O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada - Manoel de Barros

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada

Manoel de Barros

I
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Leite, Leitura - Paulo Leminski

Leite, Leitura

Paulo Leminski


letras, literatura,
   tudo o que passa,
tudo o que dura
   tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
   tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
   de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Rio - Manuel Bandeira

O Rio

Manuel Bandeira



Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Relógio - Oswald de Andrade

Relógio

Oswald de Andrade




As coisas vão
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Cuidado. O amor - Casimiro de Brito

Cuidado. O amor

Casimiro de Brito


Cuidado. O amor
é um pequeno animal
desprevenido, uma teia
    que se desfia
pouco a pouco. Guardo
    silêncio
para que possam ouvi-lo
    desfazer-se.

domingo, 9 de outubro de 2011

A uma passante - Charles Baudelauire

A uma passante

Charles Baudelauire

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

sábado, 8 de outubro de 2011

Vida Obscura - Cruz e Sousa

Vida Obscura

Cruz e Sousa



Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres,
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste no silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Canção de Alta Noite - Cecília Meireles

Canção de Alta Noite

Cecília Meireles

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... — enquanto consente
Deus que a noite seja andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar — somente.
Não necessita de nada.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Vandalismo - Augusto dos Anjos

Vandalismo

Augusto dos Anjos

Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Anti-Ícaro - Victor Colonna

Anti-Ícaro

Victor Colonna


Não sei se foi voo
Ou queda.

O abismo me encontrou
Quando pus os pés no chão.

Não desejei estrelas
Nem derreti as asas
Ao procurar o sol.

Caí sem ter subido aos céus.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

nação de pária - Nelson Ascher

nação de pária

Nelson Ascher


Não que me agrade
gaiola ou grade --
pelo contrário.

Não que me aguarde
lá dentro um mar de
rosas: meu páreo

não é bem este e,
como da peste,
corro por fora,

enquanto a esfinge
feroz nem finge
que me devora.

Porém sucede
que, sem parede,
nada me ecoa,

nem a arbitrária
pátria que, pária,
procuro à toa.

domingo, 2 de outubro de 2011

Aquela cativa - Camões

Aquela cativa
Camões


Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que pera meus olhos
fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.

Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo.
E pois nela vivo,
é força que viva.

sábado, 1 de outubro de 2011

Música Surda - Dante Milano

Música Surda

Dante Milano


Como num louco mar, tudo naufraga.
A luz do mundo é como a de um farol
Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.

O tempo se desfaz em cinza fria,
E da ampulheta milenar do sol
Escorre em poeira a luz de mais um dia.

Cego, surdo, mortal encantamento.
A luz do mundo é como a de um farol...
Oh, paisagem do imenso esquecimento.

Luar - Guimarães Rosa

Luar
 Guimarães Rosa

De brejo em brejo,
os sapos avisam:
--A lua surgiu!...

No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
Rola,desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da via-láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...

A Canção do Mendigo - Rainer Maria Rilke

A Canção do Mendigo

Rainer Maria Rilke


Vou indo de porta em porta,
ao sol e à chuva, não importa;
de repente descanso o meu ouvido
direito em minha mão direita:
minha voz me soa imperfeita,
como se nunca a tivesse ouvido.

E já nem sei quem clama em meus ais,
eu ou outra pessoa.
Eu clamo por qualquer coisa à toa.
Os poetas clamam por mais.

Com os olhos eu fecho o meu rosto
e minha mão lhe serve de encosto
de modo que ele pareça
descansar. Para que não se esqueça
que eu também tenho um posto
para pousar a cabeça.